Entre 10 e 12 de dezembro de 2019 foi organizado pelo Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz) o 2º Encontro de Saberes denominado “O Campo na Cidade: resistências, (re)existências e interculturalidades no cuidado e na alimentação”. O objetivo principal foi debater e compartilhar como indígenas, quilombolas, povos tradicionais de matriz africana, movimentos da agricultura familiar e camponesa resistem e se reinventam dentro ou na interação com as cidades, e como estas podem se humanizar, tornando-se mais inclusivas, sustentáveis e saudáveis a partir dos saberes provenientes dessas experiências. O Encontro é uma estratégia do Neepes de produzir conhecimentos interdisciplinares e diálogos interculturais que apoiem lutas por saúde, dignidade e direitos territoriais, assim como compartilhar resultados de pesquisas em andamento e construir de forma co-labor-ativa pautas futuras de importância para as lutas.
Ao longo dos três dias contamos com cerca de 90 pessoas que incluíram grupos acadêmicos (FIOCRUZ, UFRJ, UFRRJ, UERJ, UFPI, UFBA, UFAM), representantes de diversas etnias de todas as regiões do país (Guarani Kaiowá, Guarani Mbyá, Sateré-Mawé, Anacé, Tikuna e Xukuru da Aldeia Maracanã), organizações quilombolas e de povos tradicionais de matriz africana (como o Fonsanpotma), de pescadoras/es artesanais, organizações vinculadas à luta pela terra, reforma agrária, agroecologia, agricultura urbana, assim como pela moradia popular. Todas as organizações e comunidades convidadas atuam e possuem experiências a compartilhar relacionadas ao tema do Encontro.
O Encontro foi organizado em três etapas: uma abertura com duas mesas redondas, uma oficina de trabalho, e um dia final de compartilhamento das discussões da oficina e avaliação final a partir dos movimentos sociais presentes.
Três eixos-questões estruturaram o Encontro e a oficina de trabalho, organizada com três grupos que compartilharam saberes, experiências e desafios. Cada grupo discutiu uma das seguintes questões semeadoras relacionadas à interação campo-cidade:
- Como as lutas por território têm sido travadas?
- Que experiências de cuidado os povos e comunidades tradicionais e camponeses trazem, resistem e reinventam junto às cidades?
- Como a produção, circulação e distribuição de alimentos, bem como sua qualidade, carência e significado, afetam o bem viver dos povos e comunidades dos campos e cidades?
De forma transversal, todos os grupos também discutiram temas que chamamos de polinizadores por portarem e espalharem sementes de outros futuros possíveis. Eles versaram sobre a construção de conhecimentos e práticas emancipatórias (ecologia de saberes); a espiritualidade e o sagrado em sua relação com a vida, a natureza e a dignidade; convivência democrática, tolerância, respeito e solidariedade na interação campo-cidade; finalmente, o significado de ser tradicional, originário e camponês diante das ameaças, transformações e alternativas em temas como identidade, continuidade, sucessão e relação intergeracional.
Boa parte das discussões foi marcada por denúncias e depoimentos sobre o agravamento da intolerância, violência e desrespeito contra os direitos territoriais, à vida, à moradia, à saúde e à cultura dos povos e comunidades tradicionais e camponeses, bem como da classe trabalhadora e moradores pobres e sem teto das cidades. Inúmeros casos de assassinatos e ameaças aos direitos constitucionais já constituídos foram relatados por organizações indígenas, quilombolas e povos de matriz africana, bem como organizações que lutam por terra e moradia. Nas cidades, a população pobre, negra e os terreiros, além da comunidade LGBTI+, sofrem com o racismo e o preconceito. Ao longo do Encontro novos casos surgiram em diversas comunidades.
Os debates apontaram que o momento exige resistência, unidade entre diferentes movimentos/organizações e cuidado. Afinal, como disse uma das mulheres presentes, militante bom é militante vivo. Nesse sentido, o cuidado é estratégico e possui múltiplas dimensões. Implica a redução do sofrimento e estresse, a proteção das comunidades e lideranças ameaçadas, além da atenção com crianças, gestantes e idosos. Implica também a continuidade das experiências exitosas que celebram e alimentam com esperança a convivência democrática e a construção de utopias. Nesse sentido, são importantes as parcerias entre movimentos, organizações, instituições acadêmicas e públicas, principalmente no âmbito municipal, estadual e internacional, para enfrentar redemoinhos e vendavais em curso.
As discussões do Encontro, num momento de crise social, ecológica, democrática e institucional, mostraram que território, cuidado e alimento se intercruzam no plano material, político e espiritual. Existem vários territórios em disputa e transformação afetados pelo capitalismo consumista neoliberal, racista e sem limites. Agravam-se os conflitos por terra movidos pelas resistências contra o neo-extrativismo do agronegócio, da mineração e produção de energia, bem como espaços de moradia e práticas espirituais atacados pela especulação imobiliária e fundamentalismos intolerantes e violentos, com instituições e políticas dominadas e cada vez mais frágeis.
O território do conhecimento, dominado pela ciência moderna ocidental de pretensão universal, sistematicamente despreza outros saberes produzidos por povos e comunidades tradicionais, por camponeses e movimentos sociais. O desafio é como reconectar as instituições científicas com a vida, a natureza, a dignidade e os comuns. Essa conexão foi rompida na construção de uma modernidade excessivamente materialista na qual a natureza é símbolo de caos, destruição e doença, sendo tarefa da ciência e suas tecnologias conhecer para dominar e, dessa forma, “libertar-se” da natureza. Povos e comunidades tradicionais e camponeses possuem cosmovisões, culturas, saberes e práticas que respondem com sabedoria a relação entre natureza e sociedade, a qual foi rompida na artificial separação entre campo e cidade. Trata-se de emancipar-se não da natureza, mas com a natureza e os povos, articulando diferentes dimensões de justiça (social, sanitária, ambiental e cognitiva). O alimento, a agroecologia, a saúde, o cuidado e a espiritualidade são estratégicos para essa reaproximação de saberes e práticas, e isso nos exige uma crescente capacidade para um diálogo intercultural respeitoso, sem dogmatismos ou fundamentalismos.
Lutas por dignidade, saúde e direitos territoriais implicam conhecimentos e diálogos interculturais éticos e sensíveis, co-labor-ativos e não-extrativistas. Para se abrir aos saberes produzidos pelos movimentos e comunidades tradicionais e camponesas, o espaço acadêmico precisa abarcar outras linguagens sensíveis e populares. Encerramos nosso Encontro de Saberes com relatos acadêmicos, gráfico-imagéticos (desenho e pintura) e poético-musicais (rap, cordel e slam poetry) que uniram pesquisadores e artistas militantes. Coracionar, sentir-pensar são estratégicos para o diálogo intercultural e interdisciplinar.
O Neepes assume o compromisso de dar continuidade ao que foi discutido no Encontro junto com nossos parceiros e redes. Contribuiremos com relatórios, vídeos, pesquisas, artigos e livros na construção de uma pedagogia da interculturalidade, bem como redes de saberes e práticas que fortaleçam o intercâmbio entre a academia, movimentos sociais e comunidades envolvidos em lutas emancipatórias nos campos, florestas, águas e cidades.
Rio de Janeiro, dezembro de 2019
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Relatos Gráfico-Imagéticos: Denilson Baniwa, Miguel Afa. Fotos: Produtora Couro de Rato.